Capítulo 1 - Opaco

Sonhava que, ainda criança, no velho chalé de meu pai, derrubava da mesa um cálice de cristal de minha mãe, que espatifava-se em mil pedaços, ao som de algum barulho da rua que, incorporado ao sonho, despertou-me do sono já leve. Abrindo os olhos lentamente para a sala do kitnet no Ferrugem, deitado no velho colchão de solteiro repousado no chão, vejo as paredes iluminadas apenas pelos feixes de luz dos postes, projetados através das frestas das venezianas. Pela ausência da luz do sol e também por minha disposição, julgo qualquer coisa entre quatro e cinco da manhã. Aproveito a interrupção para ir ao banheiro e, entrementes, percebo que não voltaria a dormir. Penso que melhor assim, pois inicio a semana cedo, a primeira ordem do dia sendo o café, divisa entre a prostração e o labor. Dirijo-me à cozinha para servir a água e ligar a cafeteira enquanto preparo um pão francês com patê, que engulo com um gole do café preto.

Sem o jornal para ler e cedo demais para ir à banca, abro as venezianas pela luz da rua e sento à pequena mesa redonda para ler o material que dona Elígia Albino Machado me trouxera no final da sexta, em lágrimas, do marido que desconfiava traí-la. Eu havia lhe garantido resultados, o que não a consolou, mas bastou para lhe tirar da sala e permitir-me encerrar o expediente. Nesse tipo de trabalho, sabendo os detalhes do marido e sua rotina - pelo menos aquela conhecida pela cônjuge - bastam alguns dias de observação sigilosa (e entediante) para obter-se alguma evidência de luxúria. No pior caso as horas se acumulam até o ponto que julgo suficiente - pois se depender das clientes a monitoria não teria fim - e apresento semanas de ausência de provas como prova de ausência, princípio esse nunca aceito pelas senhoras, e melhor assim, pois não voltam a trazer-me semelhantes casos - como são enfadonhos, busco adiá-los, mas sendo esse o único em minha pasta rendo-me a sua leitura.

Sentado à mesa fitando o documento sobre o marido, César Machado, ainda que fornecido por uma esposa desconfiada e portanto pouco objetiva, logo percebo que se encaixa no perfil dos adúlteros de costume, apesar desse ser bastante variado. Executivo com viagens frequentes, bem remunerado, portanto com tempo e liberdade para perambular, com filhos e da mesma idade de Elígia - 41 - suficiente para não lhe ter mais a atração de outrora... Basta. Pessoalmente nunca cedi a semelhantes tentações, mas não condeno aqueles que a elas sucumbiram. Afinal como poderia, eu, atirar a primeira pedra? Se o que fiz não foi trair a quem mais me amou...

Sigo a leitura do material, bem preparado por Dona Elígia, que era freguesa, não por andanças anteriores do marido, mas pela irmã caçula, Alberta, que desaparecera há alguns anos, em um caso de fuga com o namorado - o segundo mais comum em minha pasta. O documento descreve a rotina de César, que toma café em casa e sai pontualmente às sete com seu Civic prata para o trabalho no centro - meu primeiro destino, penso - enquanto Elígia leciona no bairro universitário. Almoça perto do trabalho com sócios ou clientes, e volta à noite para a casa de dois pisos no Jardim Brasil, nos subúrbios, qualquer coisa entre seis e oito horas. Descreve ainda suas viagens, mas como não estavam previstas para aquela semana deixo para um segundo momento, e passo a consultar o mapa por rotas entre casa e trabalho enquanto busco na memória pontos de interesse entre os dois. Motéis, hotéis e pousadas, cafés e restaurantes, lojas de roupas femininas, joalherias, casas de senhores, e outros estabelecimentos convenientes ao adúltero.

Mentalizadas as rotas, decido partir e terminar a leitura in loco. Visto a polo cinza empoeirada e a calça jeans envelhecida, já com a marca da carteira no bolso traseiro, e desço à garagem para ligar a Fiorino picape cinza, que custa a pegar devido ao frio e ao motor a álcool. Carro de serviço típico, mantenho ainda uma escada na caçamba, tanto pela aparência de estar ali realizando algum trabalho ordinário, o que garante a ignorância dos observados, como pela utilidade na escalada de muros. Saio antes do raiar do sol, protegido do sereno pelos vidros embaçados e o ar quente do carro, e observo no caminho algum local que porventura deixara passar, dirigindo-me ao trabalho de César para reconhecer terreno.

Chegando no centro, que começa a acordar, paro apenas para comprar um jornal, que passo a folhar ao estacionar próximo à firma de Machado, no décimo andar do Edifício Egeu, prédio de vinte e três andares com vidros espelhados e fachada imponente. Com a claridade do sol nascente leio o pouco que há de interessante, incluindo a previsão de chuva para o final da semana e o jogo do Ferrugem, e passo a observar os transeuntes, que chegam junto dos raios amarelados a leste e da matiz azulada da manhã nascente. Trabalhadores, estudantes, atletas. Me boto no lugar de César e observo as mulheres. Jovens do cursinho com mochila nas costas ou livros às mãos, que acendem em alguns homens uma chama pela pele ou sorriso ainda sem as marcas do tempo, da qual não compartilho, e que adivinho ser também o caso de Machado. Sem paciência para a inocência, sua puerícia me enjoa, e quanto mais bela ou casta tanto mais me julgo indigno. Junto delas observo jovens adultas e senhoras indo ao trabalho, de vestes simples como as minhas abrindo lojas, ou de saia grossa, blazer e bolsa ingressando no Egeu, colegas ou subordinadas de César, suspeitas usuais, penso, além de jovens fidalgas e velhas donas com trajes de corrida, que não excluo como potenciais amantes, principalmente as de corpo jovem e esbelto.

Volto os olhos para dentro e passo a folhar o perfil, em que Elígia conta que o marido pouco lhe fala da família, o que a fazia suspeitar origens humildes. Sabia que perdera a mãe cedo, para alguma doença imprecisa, e que tinha grande desafeto pelo pai, que julgava alcoólatra, e pelos irmãos, que dizia vagabundos. Era rígido na educação dos filhos, trabalhara durante décadas na mesma firma, crescendo até a posição de executivo, mesmo sem educação formal. Segundo a mulher, que detalhou um perfil e não apenas possíveis amantes - como sabia ser exigência minha - César era visto pelos subordinados como exigente, mas justo, e pelos pares como sereno, mas focado. À primeira vista parecia reunir o necessário para uma traição como válvula de escape. Alguém cujas origens deram poucas opções caso quisesse superar sua condição senão a autodisciplina - cujos limites a vida porventura testa. Uma de várias possibilidades. Passo pelas fotos de Machado - um metro e oitenta, do peso certo para a altura, cabelo recém grisalho, barba feita em todas, sempre de camisa social - um retrato do seu trabalho, sua identidade, penso. Sinto, porém, que vejo apenas a camada exterior de um recipiente opaco e intransponível.

Ligo a rádio e aguardo pela chegada de Machado, enquanto sigo observando aqueles que habitam a região e seus estabelecimentos. Na esquina o Egeu, imponente, e à esquerda uma pequena galeria com uma conveniência, de onde já planejo adquirir um café, além de um restaurantes executivo - e outro no lado oposto da rua - uma loja de móveis, e uma ótica. Ao lado da galeria um pequeno prédio abandonado, seguido de dois outros grandes prédios relativamente novos, o BLZ, da construtora de mesmo nome, com altura e arquitetura semelhantes ao Egeu, e o Cosmopolita, com menos andares, fachada mais simples e salas menores, ambos abrigando dezenas de escritórios, e centenas de potenciais companheiras de Machado. Do outro lado da rua, ao lado do restaurante de frente ao Egeu, uma farmácia e um bar compunham o térreo de um prédio residencial, e ao seu lado uma pequena loja de bijuterias, além de um prédio comercial maior, hospedando um centro de exames de imagem. Na esquina, um grande mercado completa a quadra do trabalho de Machado, majoritariamente comercial.

Às sete e dez um Civi prata adentra o estacionamento do Egeu, o qual sigo após um tempo. Iniciam-se assim os trabalhos propriamente ditos, penso. Estaciono ao lado, pego uma caixa de papelão, desço e, sem parar para não levantar suspeita a uma eventual câmera de vigilância, verifico que a placa é a de César, conforme fornecida por Elígia. Pego o elevador ao térreo, e ao abrir da porta verifico as placas dos estabelecimentos no grande mural de trás da recepção. Enquanto caminho em direção ao recepcionista sigo lendo as placas, decorando o que posso sobre os condôminos - escritórios de advocacia, médicos, dentistas, a empresa de logística de César... Indago o funcionário sobre o andar de um doutor qualquer, para quem eu teria uma entrega, discuto e peço por mais informações diante da negativa, enquanto sigo lendo, e enfim volto ao estacionamento. Parando ao lado da Fiorino finjo procurar pelas chaves enquanto espio para dentro do carro de César, em que vejo apenas algumas pastas com documentos. Tiro o carro de volta à rua e pego um café na conveniência, que, convenientemente, me dá vista da saída da garagem do Egeu.

Cafeinado, caminho pelo bairro enquanto aguardo o almoço de César, buscando entrar em cada rua das quadras que rodeiam o Egeu. Observo o comércio e as pessoas, imagino alguns locais de encontro potenciais, mas não havendo nada notável retorno ao carro. Com os vidros abertos e ouvidos atentos, lanço olhares à saída do estacionamento a todo movimento proveninete daquela direção, entre as palavras cruzadas e revisão do mapa do bairro dos Machado - nenhum Civic. Monto em minha cabeça algumas rotas e retomo a leitura do material tentando reunir as peças fornecidas por Elígia - o marido distante dos filhos, fechado consigo, sem o apetite de outrora, com reuniões até tarde mais frequentes que o usual, barro nos sapatos, um cheiro diferente (mas não de perfume)... Conhecera outra, fora à sua casa à noite, atravessara o jardim, já virara rotina... Com a mente agitada e confusa, dou mais uma volta, e paro em outra conveniência para comprar uma água e usar o banheiro.

Por volta do meio dia avisto pela janela do motorista César saindo a pé, conversando com dois outros homens de traje social, um deles com uma pasta em mãos. Acompanho-os atravessar a rua, e então pelo espelho da Fiorino enquanto dirigem-se ao restaurante logo atrás. Após entrarem, desço e tenciono seguir, mas diante dos preços anunciados à porta e do honorário concedido por Elígia, além do provável assunto de negócios, opto por um cachorro quente da conveniência e o retorno à Fiorino. Engolido o pão mole com auxílio d'àgua de mais cedo, aguardo a saída de Machado, que regressa ao Egeu, enquanto eu sintonizo no programa esportivo que deixo de fundo para minha sesta. Acordo por volta das duas e o resto da tarde passa monótona, bem como os dias seguintes, em que porventura estaciono a Fiorino na garagem do Cosmopolita para retirar de vista e não chamar a atenção do observado mediante repetidos dias próxima de si, estabelecendo-me ora em uma conveniência, ora n'outra, ou então à calçada. A observação dos hábitos e a leitura do livro aberto produzido pela mulher, expondo detalhes íntimos da vida do observado, geralmente espanta de mim a sensação de estar diante de algo inacessível e inatingível geralmente causada pelo tipo executivo, mas no caso de César, sigo vendo-me diante de algo sólido, superior.


Capítulo 2 - Presa

O sol de quinta começa a baixar, o céu começa a tomar seu tom alaranjado. Os empregados deixam os escritórios, a maioria retornando ao lar, alguns rumam ao mercado, outros ao bar, cada um com algo ou alguém diferente lhe esperando em casa, e levando consigo o peso de um dia porventura igual aos anteriores, mas único entre as demais pessoas, se não pelas atividades desempenhadas, pela forma como as experimentou, forjada pelas experiências passadas, que moldam seus desejos e aspirações futuras. Da garagem do Egeu, cujas vidraças refletem o sol laranja em um ângulo ofuscante, forçando-me a estender a mão para tapar seu brilho, vejo sair o Honda de César, um pouco mais cedo que o usual, e sigo-o no retorno à casa.

Sem pensar muito no trajeto, que já tornou-se habitual, o sol poente penetrando o para-brisa, forçando-me a baixar o para-sol e abrir o vidro para liberar o calor, deixo-me levar pelo fluxo do trânsito, que à essa hora corre lento e permite difundir a atenção ao horizonte que contorna a vista, sob o qual avançam tons rosados e vermelhos à medida em que a noite avança sob o dia, enquanto sigo em direção ao subúrbio, deixando para trás o calor do dia e a agitação do centro.

Entrando no Jardim Brasil, o Civic dobra à direita onde normalmente seguiria em frente. Bairro completamente residencial e habitual a César, e não havendo nada planejado para a semana na pasta fornecida pela mulher, não me vem a mente nada que justifique tal desvio, senão uma visita conjugal. Com a atenção redobrada, deixo a distância entre mim e o Civic aumentar intuitivamente, como se temesse ser descoberto. César não para mais que o normal nas esquinas nem reduz nas retas, o que ameniza meus instintos. Já subúrbio adentro, em região não plenamente desenvolvida, a maioria dos terrenos ainda a venda, aumento a distância a ponto de quase perdê-lo de vista, dado que outros carros já são remotos. Vejo o Honda chegando ao fim da via calçada, havendo uma última rua à direita para retorno, antes de seguir em chão batido, para uma área com mato à direita e lotes à esquerda. Vejo a poeira reluzir a luz de freio do Civic, que segue em ritmo reduzido mato adentro. Sei que a estrada de chão não leva muito adiante, com poucas ruas laterais, vazias. Sendo assim, e sabendo que chamaria atenção se o seguisse, paro a Fiorino ainda na parte pavimentada, em frente a uma das poucas casas, de alto padrão como as demais, jardim à frente com arbustos e decorações - um carrinho de mão com plantas dentro, uma estatueta decorativa de alienígena... E aguardo, julgando ser um local remoto propício para encontros, quiçá inóspito. Cerca de quinze minutos se passam. Sem sinal de César ou de uma segunda parte, desço e sigo a pé em sua direção, observando antes que, além das poucas casas com luzes acesas, a região conta apenas comigo, e César.

Já noite, caminho pelo lado direito, próximo do declive separando a rua da mata que penso usar de cobertura caso o Civic retorne ou a mulher apareça, ouvindo somente os grilos, rãs, e as folhas das árvores. Ando por cerca de duzentos metros sob a luz da lua cheia até ver o carro estacionado em um galpão de madeira em uma entrada aberta no mato, com uma luz amarela passando por pequenos orifícios e pelas frestas entre as tábuas. Encostados no galpão baldes, enxadas, um cortador de grama e outras ferramentas. Não percebendo ninguém do lado de fora e o Civic apagado, ando para o meio e então à esquerda da estrada de terra, deixando o potencial abrigo do mato em troca de uma visão melhor do que está adiante, revelando uma grande casa de alvenaria após o galpão, com dois pisos de pelo menos cem metros quadrados em cada andar, cercada de um belo pátio com arbustos e estátuas que não identifico na penumbra, e de uma grade alta com sebe irregular - possível de pular, penso. Fico surpreso com a existência dessa casa, uma vez que no mapa constava o local como não loteado e eu não a conhecia, mas volto minhas atenções ao galpão, uma vez que dentre os dois é o único iluminado, e onde César logicamente estaria.

Já a cerca de vinte metros do local, volto para o mato, me agacho e reduzo o passo para evitar ser visto ou ouvido. Ouço pelo menos dois homens conversando, me aproximo tentando distinguir o que dizem - "com ela", "da próxima vez", "amanhã" são algumas das palavras soltas que consigo identificar antes de escutar o barulho dos cascalhos de um carro surgindo à distância atrás. Adentro lentamente à vala onde inicia a mata e me deito em uma posição não visível da estrada, mas que também me tira a visão dela. Guiado pelo som das rodas sobre as britas, aguardo o veículo passar. Parando à frente - julgo que próximo de onde está estacionado o de César - ouço duas portas abrirem e fechar, e cumprimentos à distância:

- Ô, sócios! Já começaram?
- Sócios! Sim, sim, entrem, estamos -

Ouço a porta fechar e as conversas se abafam. Busco aproximar-me para ouvir melhor. Enquanto escalo a vala sujando-me no barro irrompe de dentro do galpão o barulho de um rock, que não afeta a orquestra da mata, mas atrapalha minha compreensão da conversa, mesmo aproximando-me das tábuas o máximo que a cautela permite. De qualquer forma fico ali pescando frases enquanto os mosquitos atacam minhas mãos e rosto e fazem-me questionar o preço cobrado de Elígia, ao mesmo tempo em que sinto-me grato pela previsão de chuva não ter concretizado-se. Entendo que combinam algo entre si, que falam de uma mulher, um dos homens fala mais alto que os demais e parece irritado enquanto os outros parecem calmos ou conciliadores. "Sim, vamos!" grita um dos homens, "Amanhã, amanhã", responde o outro. Ao fim da primeira música, consigo escutar mais da conversa:

- O que você acha, César? - diz o homem que fala alto
- Não sei. Nunca fizemos dessa forma, seria a primeira vez.
- E qual o problema? - insiste o homem
- Eu não posso prever o que -- a próxima música inicia

Falam sobre horários e datas, depois passam a falar de carros - ouço Civic - até que a música começa a esmaecer:

- ... só, né? Eu também. - fala um terceiro homem
- Pois bem, está resolvido. E como está o Corolla? - pergunta César
- Sócio, faz só dois meses que -- a próxima música já começa com gritos.

O tempo todo penso que nada daquilo faz o perfil de César. De onde veio, e da forma que age, não deve manter amigos da infância, ou pelo menos não deve meter-se em galpões com eles. Sócios? Do Egeu, ali? Não fazia sentido. Alguma esquisitice ou fetiche, como aqueles grupos de swing, que esconde da mulher e de todos, exceto dos "sócios"? Não parece seu tipo. Antes que eu pudesse chegar a alguma conclusão ouço a música cessar, a porta abrir, e novos cumprimentos serem trocados. Regresso à vala enquanto escuto as portas fecharem e a partida dos carros - primeiro um, depois o Civic de César. Enquanto ouço o barulho dos cascalhos indicar sua partida, uma sensação sutil e breve irradia rapidamente em meu estômago, como se sentisse, por um instante, que de predador passara a ser presa, ao lembrar que havia um homem no galpão quando César chegara e que não viera com ele e também poderia não ter partido junto de si. Percebo porém, pelas folhas das árvores, que a luz do galpão se apaga, e ouço por um ou dois segundos o que parecem passos abafados saindo do galpão em direção à casa. Permaneço deitado até escutar as correias rangentes de um portão de ferro se abrindo e o latir de um cão, que alivia meu estômago. Sem mais barulho de cascalhos, subo lentamente da vala à estrada, observo a casa e vejo uma luz acesa, mas cortinas fechadas. Aproximo-me do galpão. Sem janelas e sem visão para o interior, dirijo-me à porta, espio novamente a casa - sem mudança - tento abrir, mas está trancada. Observo através das frestas da madeira, mas está muito escuro. Decido que voltaria durante o dia para investigar. Retorno às margens da mata e dirijo-me de volta à parte loteada, antes do mato, e em direção à Fiorino. Por que se reuniriam no galpão, havendo ali a casa? A mulher do primeiro homem estaria em casa, para optarem pelo local rústico? Após algumas centenas de metros não penso mais em alguma explicação para aquilo, mas sobre como regressaria no dia seguinte sem chamar atenção, e sobre como a empreitada que assumi para Elígia passava a se mostrar mais trabalhosa do que previ.


Todos os direitos reservados a emplasto.xyz. Originalmente publicado em 04 de Outubro de 2023.


Capítulo 3 - Tormenta

Ainda criança, em um dia de sol, corria pelo jardim jogando bola com Vítor. Persigo a bola até o matinho à esquerda de casa, em que encontro-me repentinamente sozinho e sem bola, escurece, e corro, de algo que vem rapidamente atrás de mim, que não vejo nem escuto, mas sinto, no vazio que irrompe em meu estômago e no frio que deixa onde antes estavam as vísceras. Não reconheço o terreno à frente, outrora familiar, corro em direção à saída, que não chega, sinto que o que me persegue está mais próximo, olho para trás, mas não vejo, a mata se fecha repentinamente em minha frente, viro e tenciono correr, mas a mata se fecha me cercando e algo frio pega em minhas costas e acordo buscando o ar e abrindo os olhos rapidamente, para a escuridão da sala. Três horas, um vento gélido sopra através da fresta da janela que deixei aberta, contrastando com o calor do dia anterior. O barulho das venezianas e das árvores balançando e trovões distantes completam o anúncio de temporal, que se atrasou um dia do que estava previsto.

Cansado, porém desperto, levanto com frio, visto um roupão velho, que pouco ajuda, então ligo o chuveiro no quente e me ponho embaixo d'água escaldante, que com um último calafrio espanta a friagem de meu torso, dando lugar a um mormaço em meu peito, e lentamente cozinha meus pés, de fora para dentro, enquanto a chuva cai torrencial do lado de fora. Não penso em nada, deixando as ideias fluírem e se organizam enquanto foco na higiene. Com o corpo limpo e a mente sã, retorno do banho aos assuntos mundanos, e concluo que precisaria adiar a visita ao galpão em virtude do tempo. Me ponho a ver pela janela a chuva que jorra reluzente em frente aos postes e raios frequentes, carregada por rajadas que sopram entre os prédios, cujo som abafa os demais, o que inicialmente me acalma, mas, como se não cessasse, acendo um cigarro e sigo sereno fitando a tormenta.

Como não iria clarear, calço a bota de couro preta e saio ainda à noite, circulando pelo centro em busca de algo, até que a fome surge e decide pelo posto dez, único local com algo para comer nesse horário. Fernando, que atende à noite, pergunta se caí da cama, e conversamos naturalmente sobre o aguaceiro, o jogo do Ferrugem, etc. Regresso à Fiorino com um café e um segundo bauru, que consumo enquanto escuto a rádio abafada pelo som da chuva no teto, e faço palavras cruzadas aguardando o horário em que combinara encontrar Elígia para transmitir o que observara durante a semana.

Pouco antes do horário dirijo-me ao café acertado, um pequeno bistrô no bairro universitário adornado com jibóias pendentes de vasos de plástico em prateleiras de madeira crua presas às paredes amarelas, mesinhas e cadeiras de metal para dois em verde fosco, iluminado por lâmpadas halogenas quentes pendentes do teto. À jovem atendente de calça social preta e camisa combinando com as paredes peço um café passado enquanto aguardo Elígia, que chega no horário, deixa o guarda-chuva à porta que adentra apressada, e me cumprimenta tentando disfarçar a ânsia, refletida também em sua veste social justa e cabelo preso com bico-de-pato. Adianto que a maior parte da semana passara rotineira, mas que vira César encontrar-se com homens a quem chamava de sócios e que falavam sobre uma mulher e pareciam fazer planos para ela, sem mencionar o local do ocorrido - por mais que conhecesse Elígia e acreditasse que não confrontaria o marido a respeito mesmo que soubesse do galpão, inconscientemente as pessoas demonstram desconfiança, e quanto mais honestas mais a evidenciam; César certamente sendo o tipo perceptivo, eu buscava dar a ela algo, como lhe devia, e ao mesmo tempo nada, para que sua desconfiança do marido não aumentasse e transparecesse. Elígia Machado questiona-me por detalhes, e frusta-se diante da ausência, exclama que era normal encontrar-se com os colegas e que poderiam estar a falar de trabalho. Lhe digo apenas que se encontraram fora do trabalho e que falavam de carros e outros assuntos alheios ao escritório, e que por cautela não pude aproximar-me para saber mais, mas asseguro-lhe que o conseguiria diante de novas oportunidades, explicando que esse tipo de trabalho leva tempo, que é natural que o flagra não venha de primeira, e que sequer se passara um fim de semana, que é nesse período que os adultérios normalmente ocorrem - Elígia franzi - e que... Descontente, cobra-me resultados, ao que lhe garanto que a semana seguinte seria mais produtiva, e como se tivesse pressa, despede-se. Como resolvera o caso da irmã, ela depositava alguma confiança em mim.


Capítulo 4 - Friagem

Choveu o fim de semana inteiro, e César passara-o com esposa e filhos, em casa, conforme Elígia adiantara-me no bistrô, onde combinamos que me telefonaria caso ele saísse, minha vigia limitando-se à noite. Aproveitei para reuni guias telefônicos e classificados de jornais velhos para neles pesquisar pela casa do mato, trabalho tedioso, mas necessário, que nesse caso fora em vão, senão por ocupar as noites de chuva na Fiorino.

A segunda amanhecia fria e límpida, e antes da primeira luz dirijo-me ao Jardim Brasil, deixando a Fiorino na última rua calçada. Carregando uma caixa de papelão sigo pela estrada de chão até o galpão. Não vejo movimento na casa, então tento abrir a porta - trancada. Espio para dentro, vendo apenas uma mesa para carpintaria com uma serra e outras ferramentas, além de tábuas encostadas na parede, e prateleiras com um rádio, gnomos de jardim, estatueta de alienígena, e outras bugigangas de pátio. Me aproximo então da casa e espio por entre a sebe, mas não vejo nada de novo, e retorno de mãos vazias, exceto pela caixa, mas contente de não ter alertado o cão com minha presença.

Aguardo na Fiorino até o horário em que os Machado já saíram, e, portando minha caixa de ferramentas, dirijo-me à sua casa. Apesar de Elígia afirmar ter acesso ao escritório do marido e não haver aposento ou comada particular a ele ou que ela não tenha vasculhado, penso que possa ter deixado algo passar. Assim sendo, e não havendo vizinhos na rua, usando da chave que solicitei a Elígia entro a pé pelo portão da frente, de grade preta ondulada e maciça, ornamentado com espinhos de latão dourados. Cruzo o pátio amplo, com grama cortada e pequenas saliências no terreno onde Elígia depositara vasos de barro com suas plantas, além de adornos como estatuetas de águias de concreto, outra de alienígena, que me chama atenção, e plaquinhas com dizeres quaisquer. Furtivo, adentro a imponente casa de dois pisos branca com pé direito alto e outros aspectos contemporâneos. Como se a figura de César me assombrasse o pensamento, tenciono pegar o maço do bolso, mas desisto ao lembrar que os Machado não fumam. A porta se abre para uma sala ampla com piso de mármore branco, com sofás da mesma cor com braços arredondados em volta de um tapete felpudo cinza com uma mesinha central com tampo de vidro. Vasculho as gavetas das estantes encostadas nas paredes, passando pela sala de jantar com seu grande lustre branco pendendo acima da larga mesa de carvalho, à cozinha moderna com balcões amplos, em que vasculho somente o fundo dos armários e o topo dos suspensos por objetos porventura ali escondidos. Encontro um maço de dinheiro, três mil em notas de cinquenta, que devolvo pensando em questionar Elígia a respeito. Não encontrando nada a mais, revisto a suíte, banheiros, os quartos dos filhos, havendo somente os objetos de costume, que ponho cuidadosamente no local de onde os retirei. Finalmente vasculho o escritório de César, envolto por prateleiras de livros, exceto à janela, e uma única mesa de mogno com três gavetas e pés de aço, sob a qual repousa uma luminária preta, um grampeador, e algumas pastas vazias, em frente à cadeira de couro preta com encosto alto. A primeira gaveta possuindo fechadura, destranco em segundos com auxílio de uma ferramenta - uma pequena tira de aço dentada, semelhante a uma chave, que, inserida em fechaduras simplórias, empurra todos pinos para cima, liberando-as. Abro a gaveta revelando papeis de negócio e contas da casa impecavelmente organizados, um molho de chaves, das quais tiro uma impressão com caneta marcadora e fita, para copiar mais tarde em um pedaço de alumínio, além de uma cartela da loteria regional, que me chama a atenção. César não faz o tipo apostador, ainda menos em tão chula modalidade. Examinando a cartela outro detalhe chama atenção - César marcara oito números, sendo que apenas seis são sorteados. Estaria ele e os "sócios" envolvidos em algum esquema de apostas? Estranhando, tomo nota dos números e tranco novamente a gaveta.

Como se nada encontrasse, sento-me à cadeira de César fitando o cômodo com seus olhos. Sigo as prateleiras até a janela, através da qual a grama verde ainda reluz um orvalho - penso nos filhos - e então volto os olhos para dentro, aos padrões na madeira lustrada da mesa, cujas manchas viram pinceladas na mente vaga - rostos distorcidos, pássaros e bichos surgem do ondulado das fibras. Volto minha atenção aos livros, pensando sobre os títulos à medida em que os percorro com as vistas. Além de enciclopédias, textos sobre administração, finanças, e contabilidade, se fazem presentes livros de história, de Roma em particular - Tácito, Plutarco, Tito Lívio, Suetônio, Marco Aurélio, Cícero, César, e Plínio compunham parte da coletânea de Machado, que não continha ficção. Levanto-me e retiro alguns títulos, folheio-os e os retorno meticulosamente ao lugar, perfeitamente alinhados com seus vizinhos, exceto por De re publica, que retorno de cabeça para baixo, como quem diz "estive aqui, mas quem serei?", e imagino a reação de Machado - não reagiria como a criança do sonho; com afinco, mas sereno, como os subordinados o descreviam, indagaria os filhos, talvez suspeitasse mentirem diante da negativa, questionaria a mulher, a faxineira, não satisfeito, voltaria aos filhos, desconfiaria, mas não deixaria por isso, impetuosamente buscaria doutrinar neles a honestidade, e.... Isto é, se o percebesse em primeiro lugar. Volto à sala, espio pela janela por movimento, e, após aguardar uma pedestre, saio pela porta de frente e regresso à Fiorino fumando um cigarro.

Sigo para o centro e verifico por vendedores da loteria nos arredores do trabalho de César. Questiono se os executivos costumam jogar, confirmando que não atenderam alguém com o perfil de César. Entrementes passo em casa para copiar as chaves e, inspirado pelos apostadores, regresso ao Jardim Brasil para tentar a sorte no galpão, verificando antes pela ausência de movimento. Tento a primeira das três cópias que parecem encaixar, e com auxílio de uma chave de fenda - a cópia em folha de alumínio é frágil demais para girar a fechadura - manobro entre os pinos girando a ferramenta. Nada. Vou para a segunda cópia ainda com alguma esperança, insisto, insisto, em vão. Sinto calor. Penso brevemente em pegar o maço, mas vou para a última chave. Após algumas tentativas a chave gira e a porta destrava, rangendo ao abrir. Adentro no aposento e lembro-me do sonho, novamente penso no maço mas decido vasculhar o local primeiro. Além do que já vira de fora, vasculho as gavetas das prateleiras rudimentares - talvez feitas ali mesmo - encontrando ferramentas de carpintaria e jardim, além de outro molho, que imprimo em fita, e um jogo idêntico ao de César. Seria isso tudo - a suspeita de Elígia, os encontros afastados - apenas um clube de apostas entre sócios que, por qualquer motivo, queriam manter em segredo? Como sabia que Elígia não aceitaria tal explicação, ao menos em primeiro momento, e como se eu também não a aceitasse, tranco a porta atrás de mim e decido seguir os trabalhos pelo resto da semana, ao menos.


Todos os direitos reservados a emplasto.xyz. Originalmente publicado em 20 de Novembro de 2023.

Capítulo 5 - Armadilha

Subia de elevador até um cliente de meu pai, o elevador para sem abrir as portas, olho para o indicador do andar - sexto - e, antes que eu terminasse de examinar a situação, volta a subir, mais lentamente que de costume e oscilando, até chegar ao andar destino. A porta se abre e o carro já começa a descer, lentamente, me forçando a lançar-me para fora. Encontro meu pai trabalhando e aviso-o do defeito, ao que ele para o que está fazendo para ir examinar. Com a porta aberta e a cabine ausente ele chama pelo elevador, que sobe lentamente, chegando apenas uma plataforma içada, com um estande segurando o painel. Ele sobe nela, remove a placa do painel, revelando alguns fios, e mexe neles, enquanto a plataforma balança conforme seu movimento, primeiro devagar, depois violentamente. Grito para que cuide, mas o metal rangente da plataforma e dos cabos grita mais alto, ela oscila, trepida, e em uma guinada vira, jogando meu pai que segura-se no chäo do edifício, ao qual me lanço para segurar-lhe os braços. Sinto seu peso me puxar fraquejando minhas costas, grito por socorro, contorço-me puxando-o para trás e grito, mas näo aguento e ele cai, acordando-me para a manhä de terça. Faz frio e a noite dá os primeiros sinais de clarear, cinco horas. Levanto-me, lavo o rosto na água fria, e engulo um päo dormido com um gole de café preto, seguido de um cigarro.

O dia clareando límpedo, esfrego o rosto com vigor, visto uma camisa desbotada, e desço as escadas à garagem. Decido sair de bicicleta, o frio mantendo-me acordado até o primeiro aclive, que o espanta. De cima observo o centro, que começa a acordar, e do outro lado o verde da serra contra o azul que começa a clarear no horizonte, onde ainda mingua a lua. Ouço os pássaros e carros distantes, e, no embalo de um declive, solto os pedais e sinto o vento frio em meu rosto e enxendo meus pulmões, e penso em todos caminhos que há até o destino e que poderia seguir qualquer um, chegando no mesmo lugar, e por isso retorno aos pedais e dobro na segunda à direita, estando rápido demais para entrar na primeira, mas julgo mal a velocidade e preciso freiar um tanto bruscamente na curva, quase caindo. Em velocidade menor, exijo mais das pernas para retomar o ritmo, mas sigo em diante, somente eu na rua, mas acompanhado pelos pássaros, gatos, e cachorros que latem a minha passagem, e, chegando ao centro, do movimento da cidade.

Já sentindo o sol no rosto, desço no posto em que Machado abastece, o cheiro de gasolina agradando-me, encho os pneus que sentia pesados, sujando minhas mãos, e sigo para o Egeu. Com a bicicleta já de lado, compro um jornal e leio enquanto aguardo por César, que chega no horário. A manhã passa rotineira, exceto pela falta da Fiorino, amenizada pela programação da rádio, que escuto pelo fone, conectado ao Panasonic preso ao cinto. Aproveito para revisar bares e bodegas por bingos e apostas, e, incentivado pelo ambiente, sento para uma cerveja antes do almoço. Vendo César ir ao executivo de costume, apesar de mais cedo que o usual, como se a cabeça boiasse serena no mar inspiro o ar, que já esquentara, e volto para casa pedalando lentamente pelas ruas como quem navega um canal. Adentrando ao lar, esquento uma panela de arroz e outra de feijão - grosso, com costela cozida até o desfio, e linguiça - o cheiro atiçando meu estômago, e delicio-me com as calabresas, que preenchem-me a barriga, que sinto pesada, enquanto a cabeça fica ainda mais leve, e, sentindo uma preguiça morna e boa, dirijo-me ao colchão feliz com a perspectiva do sono, e, sem pensar muito, adormeço.

Acordo da sesta sem sonhos, meio dia e quinze, e dirijo de volta ao centro, verificando pelo Civic de César transitando a picape na garagem do Egeu, e saindo em seguida. Paro na rua e, recém sintonizada uma música, pondo-me a relaxar, sou despertado pela visão do Honda prata saindo do Egeu, em horário incomum para Machado, já tendo almoçado. Dou partida e sigo-o por alguns minutos enquanto afasta-se do centro em direção ao Jardim Brasil, mas, ao invés de entrar no subúrbio, acessa a rodovia. Elígia não advertira-me de nenhuma viagem na semana, mas documentara que não era incomum César realizar alguma viagem marcada em cima da hora, e que, diferente de seus colegas, preferia dirigir e o fazia sozinho, a não ser que as circunstâncias o obrigassem a dar carona, que, conforme observo pelo vidro trasiero do Civic, não era o caso. Sendo mais difícil permanecer despercebido na estrada, pela direção mais constante e livre de distrações citadinas, permitindo e exigindo mais atenção do motorista aos demais, paro em um posto após alguns minutos seguindo César à distância e depois volto acelerado para alcançar-lhe novamente, assumindo que seguiria reto até uma das cidades vizinhas ou a capital, sem desviar para alguma estrada de chão lateral. Após poucos minutos acima do limite encontro o Civic e desacelero. Poucos minutos depois é César quem para em um posto, e paro junto, estacionando longe dele - posto de caminhoneiros com estacionamento amplo e cheio de carretas, deixo a Fiorino em uma parte mais lamacenta, vendo de dentro dela César estacionar ao lado de uma bomba e ir à conveniência enquanto enchem-lhe o tanque.

César sai da loja e atrás dele sai uma indiazinha de saia longa, saltitante. Ambos vão até o frentista, com quem conversam. Estranho, assumo que César faça conversa fiada enquanto a índia seja regular do local vendendo artesanatos ou balas. O tanque cheio, César paga o frentista, e ambos entram no carro com a maior normalidade. Diante de tal estranhesa sinto o estômago antes cheio repentinamente vazio, como se recém tivesse acordado, e o frio que deixa no lugar da comida faz-me automaticamente puxar um cigarro, que acendo enquanto César liga o carro para retornar à rodovia, ao que instintivamente repito o movimento na Fiorino. César faz o retorno, e sigo-o à distância até o Jardim Brasil, da mesma forma de antes. Adentrando o subúrbio, César pega novamente a estrada de chão, e deixo a Fiorino no lugar usual, seguindo-os a pé.

Sigo rente a vala até o galpão, que aparenta estar vazio, e, dirigindo-me ao meio da estrada de chão vejo estacionados no pátido do casarão diversos carros, incluindo o de César. Tenciono puxar o maço quando ouço o barulho dos cascalhos atrás, refugiando-me na mata. Escuto o carro passar sem parar no galpão, ascendo agachado à estrada e observo-o parar ao portão, vejo o motorista abrir a janela para endereçar-se a um homem de terno simples, que acena com a cabeça e abre o portão, e que julgo um segurança. Acendo o cigarro enquanto penso nervoso como prosseguir. Penso em arriscar a entrada - não poderia desperdiçar a oportunidade de revelar o mistério de César e sua companhia inóspita, mas instintivamente rechaço a ideia, imediatamente pensando na alternativa cautelosa de aguardar o regresso dos dois e seguir-lhes ao próximo destino. Penso porém que César poderia regressar sozinho e a chance escorreria pelos meus dedos. Uma terceira ideia surge repentinamente, um meio termo. Ao invés da entrada furtiva e arriscada, entraria pela porta da frente, ou pelo menos o tentaria, se nada mais para tentar extrair alguma informação do segurança, e, caso falhasse, simplesmente regressaria ao carro e aguardaria César.

Resoluto, apago o cigarro e retorno ao carro com passo apertado. Penso em fingir uma entrega, mas para quem? Não encontrara informação a respeito dos residentes, e a ausência de um destinatário seria suspeita pelo segurança; quiçá receberia a entrega para encaminhar ao patrão, sem fornecer-me informação alguma. Atiçado, resolvo simplesmente solicitar entrada "ao evento". Se questionado, recorreria à entrega, e para isso deixo a caixa de papelão a mãos, junto de alguns papeis do banco do carona. Penso ainda na possibilidade da desconfiança do funcionário fazer-lhe acompanhar meu retorno à Fiorino, para confirmar minha saída ou de onde viera. Com isso em mente levo o carro até a esquina, de forma que fique fora de vista, e sorrio ao deparar-me logo em seguida com um lote com materiais de construção e um papa-entulho, onde camuflo a picape, a escada que trepida na caçamba completando o disfarce. Retorno a pé até a rua, e egresso pela estrada de chão ao casarão, acendendo um cigarro para me acalmar.

Caminho ereto, mas leve, sentindo-me furtivo enquanto tento curtir o cigarro, que apago com a sola do sapato ao chegar à portaria. Olho pela janela buscando o segurança, que a abre ao avistar-me.

- A senha? Pede ele, sem dizer mais nada.

Fico em silêncio durante um período que deve ter somado de um a três segundos, mas que em minha mente durou dez vezes mais. Como quem não entende olho para o lado buscando a caixa, avistando primeiro o jogo de oito números que copiara mais cedo. A ideia me atinge como um raio; pego o papel e leio as dezenas com naturalidade ao segurança. Ele me olha por um período que novamente deve ter durado no máximo alguns segundos; fito-o diretamente os olhos negros, como que para ver quem quebraria o disfarce primeiro, mas ele simplesmente acena com a cabeça e retorna à guarita, e o portão se abre a minha frente. Um frio corre minhas costas, ao pensar na possibilidade da minha ideia improvável ter na verdade produzido o valor errado, e de eu estar voluntariamente entrando em uma armadilha da qual poderia não mais sair.


Capítulo 6 - Caça

Tarde demais para recuar, sigo em frente olhando rapidamente para a casa, com as cortinas fechadas não consigo observar para dentro, mas vejo uma mulher à porta; volto os olhos para os carros enquanto cruzo o estacionamento - uma Mercedes e outros importados estacionados, em sua maioria pretos, reluzem o sol que arde no início da tarde, e penso em como destoo deles e seus donos. Avisto o Civic, vazio, contando quinze carros ao todo. Me assusto ao lembrar do cachorro, que não vejo. Já próximo à casa penso em passar-me pela ajuda, mas o que diria se questionado? Penso também em apenas espreitar de fora, mas seria avistado pelo segurança ou pela mulher. Desisto de qualquer disfarce e simplesmente dirijo-me à porta da frente, me sentindo pelado.

Sou recepcionado por uma mulher esbelta de blazer e calça social pretos, como seu cabelo ondulado, preso, e camisa branca. Ela apenas sorri, o que não retribuo, e abre a porta. Olhando para dentro alivio-me com a ante-sala vazia - sob o piso de mármore branco sofás de couro tingido em branco, os braços contornados por um relevo, além de aparadores com pernas metálicas, pés redondos em latão dourado e tampo de vidro, suportando vasos claros pintados com cenas da Roma antiga, enquanto um porta-chapéus segura um sobretudo. Paredes de gesso sustentam, acima de um boiserie, largos espelhos que sinto me refletirem desnudo. Ouvindo uma conversa distante concentro minha atenção na porta que dá ao hall, aparentemente vazio e semelhantemente ornado, a parede branca ao fundo costeando um pedestal de gesso que suporta um busto feminino. Adentro o mais naturalmente possível, sob as circunstâncias. A porta à esquerda revela uma sala com piso de madeira escuro cercada de prateleiras de livros, em que dois homens de traje social conversam de trás de um sofá de tecido verde, suponho que com outros à frente. Reconheço imediatamente o primeiro como o delegado Chiman, conhecidamente corrupto, e após breve observação distingo o segundo homem, ninguém menos que nosso governador, que até agora vira somente nos jornais, que não lhe falam bem. Avisto ao fim da sala um corredor, que não examino por ora. À direita do hall, uma sala com ampla mesa de nogueira servida de pratos de porcelana branca, talheres prateados e taças de cristal, em que não avisto ninguém, sendo naturalmente minha escolha. Adentro a sala de jantar, ornada semelhante ao hall e igualmente vazia, as janelas externas com as cortinas cerrada que vira de fora. Um pequeno corredor dá no que julgo a cozinha. Sigo o barulho das panelas e talheres pelo corredor, que segue além da cozinha para uma pequena ante-sala com uma porta externa, e, olhando rapidamente à direita vejo a ampla copa com armários brancos pendentes sobre balcões de granito preto no ladrilho branco, em que duas mulheres debruçam-se no fogão e nos balcões, uma mexendo uma grande panela de alumínio, e a outra cortando algo. Como sigo despercebido testo a porta externa, e, aliviado por estar destrancada, retorno ao hall para buscar mais informações.

De volta ao hall, não vejo mais Chiman nem o governador, mas ouço conversas abafadas por uma música clássica. Me aproximo pela parede, apenas o suficiente para olhar para dentro da sala pelo vão da porta, em que vejo uma dezena de homens de traje social de costas, sob um grande tapete persa, e outros sentados no sofá, todos assistindo a algo. Avanço vagarosamente sala adentro, cuidando o passo para não fazer barulho, e vejo que assistem a mulheres nuas dançando sozinhas, vendadas, não, jovens, meninas! E reconheço a índia que viera com César. Sinto um nó na garganta e um calor repentino me faz suar imediatamente, me viro de sopetão e recuo em direção à saída, as pernas precipitando-se, e por um instante temo ter feito barulho e o medo soma-se ao de já ter sido descoberto na hora da entrada, o que faz afobar-me ainda mais pela porta, que abro brusco, sequer vejo a recepcionista, e caminho apressado à saída, ou penso que caminho, mas as pernas já correm, e, assim que a vejo, vejo também o segurança.

Outro nó forma-se em minha garganta e, antes que pudesse digeri-lo, ele se vira e me fita. Olho em seus olhos por um segundo tentando julgar meu adversário, e, antes que concluísse qualquer coisa, ouço a porta da casa se abrir atrás de mim. Me viro e vejo dois homens saindo como se vasculhassem por algo. Olham para mim, olho novamente para o segurança que segue me fitando, meus ouvidos zunem, e lanço-me em uma investida para a cerca. Ouço seus pés correndo no cascalho atrás de mim enquanto pulo, caio e me alço correndo, ouço um bater de portas, olho para trás e não os vejo, enquanto corro pela estrada de chão ouço a partida de um carro e jogo-me ao mato, invisto mata adentro escutando só os galhos que me arranham e as folhas que quebro. Lanço-me em direção à rodovia, saindo do mato para o acesso, corro como nunca pelo asfalto, olho para trás e vejo um carro preto acelerando, atravesso a rodovia sem olhar além da visão periférica e pulo um portão de ferro para um milharal, batendo a perna na haste e caindo. Sem sentir nem pensar nada corro entre os milhos até outro mato, atravesso-o até uma lavroura e até a estrada de chão que a costeia, encharcado de suor corro esbaforido sem sentir mais as pernas, tenho a impressão que acelero cada vez mais, até que me falta o ar, por mais que o ofegue, e volto a sentir as pernas, que me obrigadam a reduzir o pique.


Capítulo 7 - Casa

Com um chiado no peito e a garganta seca sigo num ritmo acelerado cruzando lavrouras e estradas de chão por o que deve somar meia hora ou cinco quilômetros, durante os quais penso tão somente no cansaço que sinto e em como ainda conseguiria suportá-lo por mais um tempo durante o qual não pensava mais nele, até que a falta de ar forçava-me a lembrar-lhe. Exausto, reduzo o passo relaxando os braços de forma débil, e transpirando sob o sol alto sigo caminhando ofegante por uma estrada de chão batido, costeada por mata de um lado e lavrouras d'outro, acompanhado do zunido constante das cigarras e do canto esporádico dos pássaros, e do cheiro característico que o rio sopra em mim numa brisa fria através do mato. Sedento, tenciono adentrar a mata para descer ao leito, mas vejo d'outro lado melancias maduras quase à beira da estrada, suas listras verdes reluzindo no sol quente, e, sem pensar duas vezes, corro em direção a uma arrancando-lhe com facilidade, jogo-a no chão rachando-a, me ajoelho e enfio o rosto no coração da fruta, doce, suculenta, e perfeita. Sento-me e devoro-a sem me importar com as semenetes, molhadondo o rosto de suco, e ali, saciando a sede e deliciando-me com a fruta, o cheiro d'água e o zunir das cigarras enchendo o ar, o dia quente e limpo e perfeito, penso somente naquilo, ou em nada, e esqueço de tudo e de todos, e como se voltasse a lembrar, levando rápido demais, sinto-me tonto, e apago.

Dou por mim após o que devem ter sido algumas horas, a julgar pela posição do sol, e, sentindo pela primeira vez uma dor aguda na perna, vejo-a roxa e inchada, machucada do portão. Levanto-me segurando nas árvores, e desço ao leito para lavar o rosto. Esfregando os olhos enquanto sinto os arranhões arderem d'água e fricção, reflito sobre o que ocorrera, as imagens correndo-me a mente. Sinto minha canela palpitar e abro os olhos num grito de raiva e dor, socando o chão de argila através d'àgua rasa, e, vendo meu rosto distorcido de ira no rio, tenciono voltar e lidar com tudo e com todos. Retorno à estrada, conseguindo empregar apenas uma caminhada lenta, que freia também meus pensamentos. Escaldado, as pernas doídas, vejo o sol descer no horizonte e se pôr atrás dos morros, as nuvens vermelhas não produzindo em mim o prazer usual por anunciarem a chegada da noite, que vem fria. Começo o trajeto de volta à cidade sob a luz fraca da lua minguante, castigado por um vento já gélido, o queixo tremendo ao ponto de me fazer rir do absurdo do movimento, grito como que para espantar a friagem, e penso somente em seguir, ou não penso em nada, e deixo as pernas andarem, até que avisto a rodovia, que cruzo, ingressando no subúrbio pela mata. Trêmulo mas cauteloso, não ouço ninguém além de mim e da orquestra da mata. Coberto pelo manto escuro da noite, sigo até avistar a Fiorino. Ah, que visão! Se algum dia um homem ficou mais feliz em ver seu carro, invejo-o por tal momento. Gasto o que restou-me de forças em uma corrida tosca até o banco, em que sento resoluto, ainda tremendo, mas sem sentir mais o frio, o vento cortado pelos vidros fechados. Fico alguns segundos ali sentado, sem pensar em nada, até que dou partida, regressando à rodovia, em que acelero sem esforço, fazendo mil metros em questão de segundos. Chegando em casa, subo as escadas com as pernas trêmulas, e vejo feliz o conforto do lar. Escaldo-me em um banho quente, a lama descendo pelas pernas roxas, a ardência dos cortes me confortando, tomo um remédio e deito-me ainda com dor de cabeça, mas logo apago.


Capítulo 8 - Infância

Caminhando pelos corredores do antigo colégio reencontro o rosto de velhos amigos, que cumprimento sorrindo. Findada a aula, corro feliz escada abaixo para a lanchonete, onde provo mais uma vez do gorduroso e delicioso pastel, olhando para o pátio gramado que reluz o sol de um lindo dia, crianças jogando bola e correndo. A sineta volta a tocar, e retorno à sala, onde vejo-me preso à classe em uma prova surpresa, o professor caminha em minha direção enquanto meus dentes caem em minhas mãos.

Acordo com dor, que desperta a memória do sonho para a do mundo. Olho meu rosto no espelho enquanto o enxáguo, estranhando a face que me fita cortada. Visto com dificuldade o roupão e vou à janela, onde acendo um cigarro e choro.

Todos os direitos reservados a emplasto.xyz. Originalmente publicado em 17 de Agosto de 2024.